
Rosalina sempre gostou mesmo de livros. Lembro de papai tentando convencê-la a aceitar de bom grado um vestidinho ou uma boneca de louça. Minha irmã apenas esboçava um querer-chorar e lá estava: um livro novo. Aprendeu a ler aos quatro, e viveu mais disso que de ar. Não era dessas crianças sorumbáticas ou que habitam, solitárias, seus castelos de nuvem. Rosalina era alegre, a que mais sorrisos distribuía e arrancava. Minha irmã desenvolveu tamanha leveza no lidar com pessoas que minha família toda empenhou-se por dissuadi-la de ser escritora e optar por uma carreira médica ou assistencial. Em vão. Discordar de Rosalina era sempre em vão. Teimosa e misteriosamente feliz, como se soubesse de algo que jamais saberíamos, minha irmã tornou-se uma adulta invejável.
Hoje é aniversário dela. Aqui, em pé, às portas da Livraria Cultura, penso no que comprar enquanto posiciono o guarda-chuva num canto. Eu poderia comprar um DVD. Rosalina ama filmes e ama Amélie. Há, pois, a justa semelhança com os grandes olhos de Amélie. Não, livros. Preciso é de um livro que sintetize um segundo, que dê a impressão fresca de uma alvorada, que desgrenhe os cabelos e confunda-se entre sentimentos e imagens que possui quem o lê. Preciso de um Pessoa. No auge da graciosidade de quem é jovem e ajuda um velho a comprar um livro, Rita, a atendente, apresenta-me à pretendida estante. O Livro do Desassossego é o que de melhor há entre o saber, o verbalizar e a solidão de jamais exprimir o que se passa aqui dentro: perfeito para as teimosias de Rosalina. Saio da Livraria e, ao alcançar a rua, lembro que preciso de flores. Ah! Ela há de perdoar-me a indelicadeza. Sob a garoa fina da cidade cinza, chego ao Cemitério da Consolação. Encontro o túmulo modesto entre mausoléus faraônicos. Olho a foto e os dizeres em latim. A saudade é mesmo uma valsinha. Flores brancas sobre o túmulo. Portando um guarda-chuva vermelho salpicado de violetinhas, avisto Rosalina. Ela jamais admitiria deixar papai de fora da festa.
2 comentários:
belo.
é bom que ela esteja portando, pois, talvez, portanto pareça que ela é o guarda-chuva.
ou não tem sentido alguma mesmo.
ah, que infelicidade a minha!!!
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