sábado, 28 de agosto de 2010

Textos incríveis de Lydia Davis

NOSSA GENTILEZA

Sonhamos em ser muito gentis com todo o mundo. Mas aí não somos nem um pouco gentis com o próprio marido, a pessoa que está mais ao alcance de nossa mão. Mas aí achamos que ele está nos impedindo de ser gentis com todo o mundo. Porque ele não quer que a gente conheça aquelas outras pessoas, é o que a gente pensa! Ele prefere que a gente fique aqui, na nossa própria casa. Ele diz que o carro é velho. A gente sabe que na verdade ele prefere que a gente só trave conhecimento com um número limitado de pessoas no mundo, ele é assim. O que ele diz é que o carro não poderia nos levar muito longe. A gente sabe que ele prefere que a gente cuide de nossa própria casa e de nossa própria família. Nossa casa não está limpa, não total-
mente limpa. Nossa família não está totalmente limpa. A gente acha que o carro daria conta do recado perfeitamente. Mas ele acha que a gente pode estar querendo sair e ser gentil com outras pessoas só porque a gente prefere não estar em casa, porque a gente prefere não se esforçar em ser gentil só com essas três pessoas?– entre tantas pessoas que existem no mundo exatamente as três pessoas mais difíceis?–, embora a gente possa facilmente ser gentil com muitas outras pessoas, como as que a gente encontra nas lojas aonde vamos, porque lá, diz ele, é seguro ir com nosso carro.


TENTANDO APRENDER

Estou tentando aprender que esse homem que brinca comigo é o mesmo homem sério que fala comigo sobre dinheiro e com tanta seriedade que nem parece mais que está me vendo, e também o homem paciente que me dá conselhos em momentos difíceis, e o homem zangado que bate a porta com força quando sai de casa. Muitas vezes desejei que o homem brincalhão fosse mais sério, que o homem sério fosse menos sério e que o homem paciente fosse mais brincalhão. Quanto ao homem zangado, ele é um estranho para mim e não sinto que seja errado ter ódio dele. Agora estou aprendendo que, se digo palavras ásperas para o homem zangado quando ele sai de casa, estou ao mesmo tempo magoando os outros, aqueles que não quero magoar: o homem brincalhão que me caçoa, o homem sério que fala sobre dinheiro e o homem paciente que me dá conselhos. No entanto, eu olho para o homem paciente, por exemplo, a quem quero acima de tudo proteger de palavras ásperas como as minhas e, embora eu me diga que é o mesmo homem que os outros, só consigo acreditar que falei aquelas palavras não para ele, mas sim para um outro, meu inimigo, que merecia toda minha raiva.


O QUE EU SINTO

Hoje em dia tento dizer a mim mesma que o que eu sinto não é muito importante. Agora já li isso em muitos livros: o que sinto é importante, mas não é o centro de tudo. Pode ser até que eu entenda essa ideia, mas não acredito nela com convicção suficiente para orientar minhas ações em função dela. Gostaria de acreditar nisso com mais convicção.

Que alívio seria para mim. Não teria mais de ficar pensando o tempo todo naquilo que sinto e tentando controlar esse impulso, com todas as implicações e consequências que isso acarreta. Eu não teria de ficar tentando me sentir melhor o tempo todo. Na verdade, se eu não acreditasse que o que eu sinto é tão importante, na certa eu nem sequer me sentiria tão mal e não seria tão difícil me sentir melhor. Eu não teria de dizer: Ah, me sinto horrível, parece que cheguei ao fim, aqui nesta sala escura, tarde da noite, com a rua escura lá fora, sob a luz dos postes, estou tão sozinha, todo mundo em casa está dormindo, não há nenhum consolo em parte alguma, só eu sozinha e mais nada aqui embaixo, nunca vou me acalmar o suficiente para dormir, não vou dormir nunca, nunca vou ser capaz de chegar até o dia seguinte, não consigo continuar, não consigo de jeito nenhum, não aguento viver, nem sequer até o próximo minuto.

Se eu acreditasse que o que eu sentia não era o centro de tudo, então não seria o centro de tudo, seria apenas mais uma entre muitas outras coisas, à margem, e eu seria capaz de ver e prestar atenção a outras coisas que eram igualmente importantes e desse modo eu teria algum alívio.

Mas é curioso como você pode ver que uma ideia é absolutamente verdadeira e correta e mesmo assim não acreditar com convicção suficiente para orientar suas ações por ela. Assim eu ajo como se meus sentimentos fossem o centro de tudo e eles ainda me levam a acabar sozinha diante da janela da sala, tarde da noite. O diferente agora é que tenho esta ideia: tenho a ideia de que em breve não vou mais acreditar que meus sentimentos são o centro de tudo. Isso é um verdadeiro consolo para mim, porque desse jeito perdemos a esperança de continuar, mas ao mesmo tempo dizemos para nós mesmos que nosso desespero talvez não seja muito importante; então ou a gente para de se desesperar, ou continua a se desesperar, mas ao mesmo tempo começa a ver como nosso desespero também pode se deslocar para a margem, uma coisa entre tantas outras.


O MOMENTO MAIS FELIZ

Se você perguntar qual a história predileta entre as que ela mesma escreveu, ela vai hesitar por muito tempo e depois vai dizer que talvez seja essa história que ela leu num livro faz tempo: um professor de inglês na China pediu a seu aluno chinês que contasse qual foi o momento mais feliz da vida dele. O aluno hesitou bastante. Por fim sorriu meio encabulado e disse que, certa vez, sua esposa tinha ido a Pequim e comido um pato, e que ela muitas vezes falava sobre isso com ele e ele teria de responder que o momento mais feliz da vida dele foi a viagem da esposa e ela ter comido o pato.

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