Um bocado de palavras para o mundo que insiste em não ver. Avassaladoras pretensões. Um tanto de hipocrisia. Bolhas de sabão. Sorrisinhos. Ironias. Amores. Tudo com açúcar colorido.
segunda-feira, 28 de setembro de 2009
Dobrado sustenido ou I just want you
Era um garoto ruivo e bemol. Melhor, um rapazinho, como dizia sua mãe. Tinha uns quantos amigos e divertia-se a ingerir grandes doses de um suco pouco doce e a batucar tudo que suportasse tal ação sem ceder ou estilhaçar. "Vai ser advogado, com toda certeza! Note esses olhos inquisitores!", sentenciou a tia, dia desses. Mas o rapazinho tinha lá suas dúvidas quanto a isso e quanto a outras coisas, por começar com como uma senhora tão boazinha podia ser mesmo irmã de sua mãe, tão afeita aos descontroles.
Ele queria mesmo era que lhe pagassem para batucar. Ou, antes disso, porque os pequenos ou não entendem direito essa coisa de remuneração ou consideram-na uma grande tolice: queria que a vida apenas continuasse a transcorrer. As demais questões como alimentação, escola, vestimentas e toda sorte de necessidades que tem um jovenzinho, ficariam a cargo da benevolência inerente ao que existe.
Ademais, sentia falta de um certo quê que não sabia ser de comer ou de montar. Uma vez até acreditou, com a fé cega das crianças e de alguns adultos, que um coçador de costas resolver-lhe-ia o problema. Não resolveu. Passou semanas a perambular pelo parquinho, a conversar com o Ananás -uma espécie de baqueta vermelha na qual lia-se Musa paradisiaca-, na tentativa de entender o que exatamente lhe faltava...Nada.
Foi numa tarde de Natal (contrariando os melhores contos sobre a magia das noites da referida data) que encontrou a tal coisa. E era uma coisa deveras peculiar, pôde notar de imediato. Calçando botinhas ortopédicas e ostentando um sorriso meio torto, a menina lia um livro com um sapo na capa. Um interlocutor teria lhe falado longamente sobre a estranheza de uma criança ler um livro numa tarde tão bonita e bem ao lado da mesa de doces. Mas o rapazinho apenas achou curioso ver uma menina que parecia não demonstrar qualquer antipatia pelo viscoso animal que sorria um sorriso misteriosamente cheio de dentes. Aproximou-se lentamente, intentando puxar-lhe o livro ou qualquer dessas ações pouco medidas e geralmente descabidas de propósito claro de que os rapazinhos são capazes. Mas aconteceu que, a meio caminho, ela voltou-se para ele e, depois de um silêncio divertido, disse-lhe: "Dê-me sua mão!". Sem saber ao certo o que dizer e meio atordoado com o tamanho daqueles olhos, estendeu a mão que a menina cutucou várias vezes, ao fim do que perguntou: "Entendeu?". Começando a imaginar que ela estava a zombar dele e subtamente tomado por um sentimento que não sabia ser de insegurança, chamou-a "boboca" e correu dali. Ao longe ainda ouviu a voz dela: "É código morse...". Parou perto da cozinha, de onde vinha uma canção e vozes que conversavam: "Leste europeu", alguém disse. O rapazinho ofegava e sentia-se dobrado sustenido.
Lá fora, a detentora do livro perguntava à tia se hoje não teriam queijo. Mas o que obviamente queria saber é se o menino ruivo não gostaria de ficar ali por um tempo. Algo como muito tempo...
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