
Querido,
deixo-te esta carta por saber que não mais nos veremos. Não estarei em casa quando chegares, não estarei na sorveteria de costume quando dobrares a esquina, não estarei estendendo lençóis brancos no varal antes do almoço. Nunca mais nos veremos e é só do que sei de fato. Os dois iremos envelhecer e morrer e ainda assim, não nos encontraremos. Fiz, é verdade, muitas coisas das quais não me orgulho e sei que te deixei embaraçado na presença dos amigos teus. Fui vil, negligente, roubei os teus anos exigindo que prestasses atenção somente à minha existência.
No entanto, meu eterno amor, quero deixar registradas aqui todas as razões pelas quais decidi, um dia, que seria tua e de mais ninguém. E o faço para que te lembres de teres sido amado e saibas que és, deveras, melhor que os outros homens do mundo.
Tu acordas no meio da noite e envolves-me em teus braços, e desperto de meu sono ao ouvir o "eu te amo" que pronuncias docemente ao meu ouvido. Pela manhã, tu olhas longamente para o meu rosto e perguntas se quero ter os filhos teus. Tu me abraças enquanto me visto, beijas-me sem pressa e fechas os olhos, como se para ver-me por outro sentido que só tu conheces. Diriges teu veículo devagar,enquanto com a mão direita apertas as minhas. Tu ouves Chico no trajeto e fazes silêncio frente à melodia e às curvas da pacata cidade. E vez ou outra ofereces-me um desvio de trajeto, uma possibilidade de mudar a vida, de partir. Conheces-me tão bem que carrego comigo a dor de ter te permitido tal profundidade, pois conhecer-me não é sempre bom. Tens momentos de angústia, quando esse saber transfigura-se em medo e solidão. E a tua solidão envolve-se com a minha. E somos sozinhos juntos. Num lampejo, deixas tudo de lado e amas-me até as lágrimas, geralmente minhas. Nos dias de frio tornas-te ainda mais lúcido. Danças comigo sem saberes como nem porquê. Contas-me tuas piadas ruins como se fossem boas. Reclamas meus gestos face às minhas palavras. Ouves em silêncio as minhas queixas e em igual silêncio mas afasta. Lembras-me, sem saberes, da humanidade que nos guia, orgulha e envergonha e por isso sou tão grata. Dizes-me tudo que não deverias e só quero estar perto de ti. Sabes de cor todas as datas de nossas vidas, como se estivesses, há muito, pensando acerca delas. Queres-me por perto e fazes todo o que podes para certificares-te da minha existência e verdade. Dás-me conforto por deixares-me perceber que és meu e agrides-me ao insinuares que podes não sê-lo. Vais e voltas. Alegras-te e entristeces-te nesse universo que em certas horas é apenas teu. Mas és em essência triste, e não há no mundo o que me fascine mais. És real ainda que em sonhos. E delicia-me a tua música, toda ela...Até a que só eu sei ouvir.
Agora vou porque já são horas. Tenta não pensar demais nas coisas não ditas ou nos motivos de minha partida. Fui para que ficastes. Lembra-te da noite quando nos conhecemos e esterei viva nela. Todo o mais guarda no esquecimento.
Dá comida ao cão e rega as flores do vaso grande. Procura a fotografia do algodão-doce para o anúncio porque a não encontrei.
Amor.
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